A denúncia, a casa e o médico da tortura

Inês

A CASA DOS HORRORES E O MÉDICO DA TORTURA

Por ditacasa

UMA DENÚNCIA IRREFUTÁVEL – LÚCIA ROMEU

A existência da casa clandestina de tortura mantida pelos agentes da repressão na cidade serrana de Petrópolis (RJ), nos anos de chumbo da ditadura militar, era de meu conhecimento desde 1971. Naquele ano, de 8 de maio a 11 de agosto, minha irmã Inês Etienne Romeu lá fora mantida em cárcere privado, sendo barbaramente torturada, seviciada, estuprada e obrigada a me denunciar como subversiva. Eu tinha, portanto, uma motivação sobre-humana para revelar à opinião pública toda a covardia e sordidez que ela sofreu quando a oportunidade se apresentasse.

Foi necessária uma enorme paciência. A denúncia só poderia ser feita depois que Inês saísse da prisão para não colocá-la em risco. Ela cumpriu pena até 29 de agosto de 1979, no Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, no Rio, saindo por força da Lei da Anistia. Foi a última, dentre todos os presos políticos, a ser libertada. Finalmente, em fevereiro de 1981, passados quase 10 anos dos tormentos vividos na casa de Petrópolis, apareceu a oportunidade. A revista IstoÉ, onde eu fazia free-lance, deu-me plena liberdade para apurar e redigir as matérias que foram publicadas sob os títulos “A casa dos horrores” e “A torturada fala com o médico da tortura”.

A apuração, na verdade, começou com a própria Inês. Presa em São Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, em 5 de maio de 1971, foi transferida para o Rio e, a seguir, de olhos vendados, para a casa onde passaria mais de três meses. Durante o cativeiro, ela registrou na memória os codinomes de seus torturadores e do médico que a atendera, além dos nomes dos presos políticos que por lá passaram e foram executados. Num determinado dia, ouviu o número do telefone da casa. Em outro momento, descobriu que estava em Petrópolis. Também viu no local o dono da casa e guardou seu nome: Mário. Quando conseguiu ter o primeiro contato com sua família, no dia 11 de agosto, Inês estava um trapo humano, destroçada, mas lúcida e com as lembranças vivas do que soubera e presenciara.

Assim, com a ajuda de nossa irmã Geralda, que a acolheu quando conseguiu sair do cativeiro, Inês redigiu um relatório sobre tudo que acontecera. Esse relatório de 1971 foi a base da apuração feita tantos anos depois. O primeiro passo consistiu em descobrir o endereço do centro clandestino de tortura a partir do número do telefone e do nome do dono do imóvel. Por óbvias razões de segurança – além de irmã de Inês, eu respondera a Inquérito Policial Militar –, fiquei de fora dessa fase inicial. Mas uma pessoa teve um papel fundamental: o jornalista Antônio Henrique Lago, que pesquisou em catálogos antigos de Petrópolis, na Biblioteca Nacional, e encontrou o número guardado por Inês, associado ao nome de Mário Lodders.

Lago havia feito anteriormente uma reportagem para a Folha de S. Paulo, intitulada “A repressão à guerrilha urbana no Brasil”, em conjunto com a jornalista Ana Lagôa. Era baseada numa entrevista em off com o coronel Adyr Fiúza de Castro, que foi chefe de Polícia do I Exército, comandante da VI Região Militar, integrante do Centro de Informações do Exército e responsável pela montagem do sistema repressivo nos anos de 68 e 69. Entre outras informações, ele revelou que os militares usavam aparelhos clandestinos e deu como exemplo a casa de Petrópolis. Inês leu a reportagem, quis conhecer seu autor e mandou-lhe um recado para que a visitasse na prisão. Lago foi vê-la várias vezes, até que um dia ela lhe perguntou se ele poderia ajudar na descoberta do endereço da casa e revelou que tinha o número do telefone. Ele assim o fez.

Fez mais: um tempo depois, foi ao local com um fotógrafo e descobriu que Mário Lodders tinha, na verdade, duas casas na mesma rua. Uma onde morava com uma irmã, e outra, a cem metros, que cedera para ser o centro clandestino de tortura. A pretexto de estar fazendo uma reportagem turística, Lago fotografou as casas e seu próprio dono. Depois, levou as fotos para Inês, que reconheceu Mário Lodders e onde ficara. Confirmado assim o endereço, Lago, a pedido de Inês, fez um contato com a OAB, na época presidida por Eduardo Seabra Fagundes, que a visitou em seguida na prisão, acompanhado de mais dois advogados. (…)

Assim que saiu da prisão, Inês foi à OAB, onde deu um depoimento formal e recebeu apoio para fazer a denúncia. Combinado o dia da ida a Petrópolis, 3 de fevereiro de 1981, a convocação de alguns órgãos da imprensa foi feita pela própria OAB. Foram chamados os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, o Jornal do Brasil e a Tribuna da Imprensa; a TV Globo e a TV Bandeirantes; e algumas rádios, entre elas, a Rádio JB. Eu fui cobrindo pela revista IstoÉ.

A pauta passada referia-se a uma denúncia de tortura, sem detalhes, para preservar a segurança de Inês. Na verdade, dentre os jornalistas, só Lago e eu sabíamos do que se tratava. Também por uma questão de segurança, a avaliação feita foi a de que a denúncia teria que ser veiculada no mesmo dia e para isso era decisivo o papel de rádios e TVs. Naquele momento, Lago já tinha saído da Folha de S. Paulo e estava como chefe de reportagem da TV Globo.

Com Inês, fomos em caravana para Petrópolis na manhã de 3 de fevereiro, uma terça-feira. “A cena foi dramática.” Assim descrevi na abertura de meu texto para IstoÉ o encontro de Inês com Mário Lodders. Na frente de todos, Inês o reconhecera e ele acabou admitindo, depois de negar, que a conhecia também. As rádios noticiaram, a Band também, e a matéria foi ao ar à noite no Jornal Nacional, já então líder de audiência. Segundo Lago, “foi a primeira vez que o Jornal Nacional veiculou uma denúncia da ação clandestina da repressão”. A matéria divulgada, de quase dois minutos, mostrava o encontro entre Inês e Lodders, com som ambiente. No dia seguinte, os jornais também destacaram a notícia.

Naquele momento, Inês já sabia, por conversas anteriores com outros presos políticos, a verdadeira identidade do médico que a atendera no cativeiro com o codinome de Carneiro: o psicanalista Amílcar Lobo. Assim, dois dias depois da denúncia da casa, fomos – Inês, o então deputado federal Modesto da Silveira, o fotógrafo A. Fontes e eu – de surpresa ao seu consultório no sofisticado bairro de Ipanema, na Zona Sul do Rio. O Carneiro era o Lobo. Frente a frente com Inês, em tenso diálogo, ele confirmou que fora convocado a ir ao “aparelho” de Petrópolis como tenente-médico do Exército. Com um gravador escondido, registrei toda a conversa para IstoÉ. Perguntei-lhe se sabia que lá era uma casa onde se torturavam presos, e Lobo aquiesceu com a cabeça.

Depois que saímos de lá, avaliamos que seria temerário guardar essa informação por quatro dias. Estávamos numa quinta-feira, dia de fechamento da revista, que só estaria nas bancas no domingo. Inês, então, procurou o Comitê Brasileiro de Anistia, que divulgou a denúncia. À noite, no último telejornal da Globo, Amílcar Lobo já aparecia na tela confirmando tudo. A repercussão foi grande.

No domingo, 8 de fevereiro, IstoÉ circulou com as duas reportagens, com edição de Antônio Carlos Fon. O diálogo entre o médico da tortura e a torturada era exclusivo da revista e foi chamada de capa. Os jornais passaram a investigar e a publicar os verdadeiros nomes de alguns torturadores cujos codinomes foram revelados no encontro entre Inês e Lodders em Petrópolis. A resposta dos comandantes militares veio forte. Eles divulgaram duras notas condenando o revanchismo, mas, pela primeira vez, não negaram a tortura. Afinal, ela havia sido confirmada por um dos seus, o tenente-médico Amílcar Lobo. A capa de Veja, de 18 de fevereiro, foi uma foto do então ministro do Exército, Walter Pires, com o título “A reação dos militares”. Na mesma semana, O Pasquim publicou a íntegra do relatório feito em 1971, já atualizado com as novas descobertas.

A coragem de Inês e a atuação de Lago foram decisivas para que tudo isso fosse revelado. De IstoÉ, recebi total apoio de Maurício Dias, então chefe da sucursal Rio, e de Aluízio Maranhão, que ficou comigo até alta madrugada, no dia do fechamento da edição. Sua presença solidária deu-me tranqüilidade para escrever e foi ele quem aprovou os textos, assim que coloquei o ponto final. Em última instância, o mérito foi também de Mino Carta, diretor de redação, que deu a todos nós liberdade para levar adiante a denúncia.

Fonte: Observatório da Imprensa

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